AS CAVIDADES DO VEIGA (Parte II) Virgílio Liquito

«Publicou alguns livros em prosa. Participou em revistas (Última Geração e Pé de Cabra), então sediadas no Porto. Colaborou com poemas nos eventos de Versos Soltos, em Espinho. Participou em Filo-Cafés em Portugal e Galiza. Colaborou na Porta Verde e regularmente no Círculo Poético Aberto, cujos eventos têm sido lavrados no café Uf em Vigo, Galiza.» (Revista Elipse, Núm. 4)

A noite calcinava-se…

Espetado com segurança na rua onde nascera, Veiga sentiu então as primeiras fornadas de água encharcando-lhe o corpo; latões aos pinchos pela calçada abaixo, alguns deles atravessando o espaço aberto entre as suas pernas, como se tratasse de uma cena de circo na penumbra, onde o cálculo carregava às costas o acaso, arrastando no seu movimento carradas de gatos esquartejados nessa noite pelos cães inquietos; os estampidos dos trovões fissurando as entretelas negras do espaço procedentes dos relâmpagos apocalípticos absorvidos nas camadas atmosféricas… Realmente Veiga sofria já os vectores do cataclismo, arrastado para os alguidares da fatalidade. Contudo, ele mostrava-se valente, defendendo a sua personalidade que lhe custara muitos amigos abandonados no âmago das multidões, dissabores e horas mórbidas de solidão frágil e nostálgica, nesses absurdos minutos de desespero. Como tal ele já não queria pensar se realmente era essa a única maneira de se lapidar; pensamentos tais que inúmeras vezes o faziam gesticular atabalhoadamente com as solas dos sapatos sob a densa cortina da chuva crescente, e que o faziam rodar-se no pavimento pelos ombros em contraponto às suas próprias querelas e esquisitices dos rebordos das suas óbvias emoções. Por isso mesmo, por estranho que pareça, a sua atitude no que concerne à libertação do seu corpo, foi-se modificando… Então a sua pressa em sair da abertura do buraco, logo se metamorfoseou em tempestades interiores na pança da sua memória, pondo em evidência os estercos – retrospectivos do seu subconsciente. Um lugar escuro do seu cérebro que lhe fazia crer ouvir o chilrear da sua bondosa ama, bem aleitada, de quem a alma tolhida já vagueava há longo tempo em plano inclinado no grande pântano das incertezas metafísicas. E assim Veiga logrou reviver aqueles momentos aprazíveis de colo, principalmente aquele em que a sua ama sempre atenta o deixou cair dos braços na oportuna profundidade do penico de esmalte… (e que bem o marcara em termos de predilecção pelos buracos).

E mais pensamentos chamaram o Veiga à “realidade”. Umas sensibilidades que lhe traziam ao cano da garganta a sua ex-esposa, mulher a quem crescia a barba sempre que o orgasmo entesuado lhe levantava o clitóris, endurecendo-o, a qual lhe pedia para ele lá chupar até lhe crescer o gogo na garganta. E fora por essa razão que Veiga resolvera despejar a mulher na rua, quando, depois de uma fornicação cansativa, dera com o focinho da mulher idêntico ao de um cão rafeiro.

E com estas retrospectivas, absorto em extractos da sua incompacta existência, Veiga sentia a sua situação cada vez mais a piorar.

Para mal dos seu pecados, um gato sorumbático, mas travesso, fustigado pelo temporal, ousou cortar a noite atravessando a rua. Os cães inquietos, porém atentos, logo o lograram ver rabiando por entre a densidade espessa da água que se fazia sentir. E obviamente, atiraram-se a ele com raiva perfurando os tenebrosos tentáculos do temporal. Mas logo se sentiram ofuscados por um súbito clarão trovejante incendiando os reflexos cristalinos da água. E então desaceleraram o seu movimento, resvalando com as polpas das patas no pavimento escorregadio. O gato, que se sentia perseguido, apercebendo-se da paragem brusca dos seus perseguidores, e já próximo do corpo do Veiga, naturalmente escondeu-se debaixo do seu casaco tombado, esperando iludir os seus inimigos ancestrais, Contudo, tudo correria bem para o bicho, se o azar não o tivesse alvejado. Realmente, quando o gato já se sentia livre da perseguição, ao Veiga deu-lhe a vontade de espernear um pouco, acto esse como contestação ao facto de uma minhoca viscosa lhe ter entrado no ouvido esquerdo. Vai daí, o gesto, um pouco acrobático, foi tão forte e certeiro que assapou a cabeça do felino. Este, que ultimamente andava engripado, ao sentir a cacetada fez logo soltar um espirro agrilhoado, profundo, embora literalmente abafado pelas abas do casaco. Porém foi o suficiente para que os cães desatinados atinassem outra vez com o faro e tivessem saltado em catadupa sobre o bicho, apanhando por tangente o Veiga coitado. Ferradela ali, e fungadela acolá e o gato ficou logo sem os colhões. Quanto ao Veiga, apanhado indefesamente na contenda, teve a triste sorte de se enterrar mais no buraco até ao umbigo, porque nesses momentos de turbulência teve a lucidez de se peidar contra uma das barrigas peludas desses cães. Peido tal, que ao bater em cheio, lapidou o cão, complicando também, por fim, a sua já crítica situação.

Acabado o incidente os bichos volveram para o alto da calçada, fustigados nas orelhas pelas carradas de água, sempre insistentes. A Veiga, já bem dessiminado na Terra, bastar-lhe-ia esperar como ser digno de homem a meio termo da sua morte.
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O temporal estava mesmo doido. Os trovões rasgavam a atmosfera, iluminando a calçada. A chuva esmagava-se em poeira molecular contra o pavimento, escachando os” boeiros” por tabela e sem piedade. Alguns latões de lixo e de fezes domésticas dançavam por cima dos paralelos sofredores de reumatismo, tamborilando-se contra os fiapos tumultuosos nas cristas gaseiformes das águas que não paravam de cair. Até o ar era sufocante, rabiava pelos intervalos das partículas aquosas… Era tal a sua força tempestuosa que, cada vez que fazia pausa e voltava novamente com mais rigor, era o suficiente para arrancar os cães do alto da calçada e afogá-los como cães vadios abandonados no seu caudal torrencioso. E eles bem tentavam erguer-se nas águas, com as cabeças e pescoços à tona, logrando sorver um ânimo folgoso e salvador. Mas de nada lhes valia esse último esforço. Parecia mesmo que a tempestade não aguentava o chinfrim e os alaridos dos bichos, e que estava disposta a esventrá-los pelo bucho. Finalizava assim a agitação dessa cãozoada que tentava em parte imitar o Veiga nas suas subidas e descidas pela calçada. Contudo algo morreria com eles, criando-se um lapso-entendível acerca do seu comportamento estranho e inerentes consumições.

(Efectivamente tudo parecia preparado com sincronismo, para que houvesse alguma relação entre a vigilância dos cães e a súbita e despropositada tempestade. É que nos bichos cresciam castelos e castelos de tinha, furúnculos, para além de serem lazarentos. Ora, como todas essas doenças lhes criavam grosseira comichão e ardência nos lombos, eles para se distraírem das dores costumavam mijar-se uns aos outros nas zonas afectadas. Tudo isso faziam até que lhes apareceu esta noite de temporal, que à priori lhes parecia saudável e refrescante.

Veiga também tinha que ver com toda essa correlação: tempestade e inquietação dos cães. Ele era o principal promotor das ditas doenças. Bastava que qualquer cadela prenhe aparecesse na calçada, já era o suficiente para ele lhe saltar e lá dentro “cuspir” nesses bebézinhos em gestação, mas inocentes. E era sempre isso, criando obviamente a revolta nos bichos sem maldade à nascença.

Mas quanto à causa básica dos cães usufruírem as tais doenças, foi pelo facto de Veiga, muitos anos atrás, ter bebido um escarrador a esbordar, no qual rebentavam bolinhas gasosas esverdeadas de escarros vivos, mas mórbidos; recipiente esse que ele sorveu então por inteiro, quando o ameaçaram que, se não engolisse tudo isso, ir-lhe-iam ao cu em zig-zag com mostarda aquecida…)
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Na calçada também Veiga morria, mas todo inteirinho, agora refesteladamente como uma rolha no buraco. Porém a sua morte era mais lenta que a dos caninos. Não dava importância à enxurrada das águas, que lhe agitavam as pernas como caniço; sentia-se indiferente a todo o género de entulho que se enrolava à volta do seu corpo, mesmo que fossem corpos de gatos arrombados pelos cães, e até aos esventrados cães afogados. Já não desejava borrifar os colhões na cama e tocar alguma punheta excêntrica antes de se deitar. Preocupava-se sim em obturar bem o buraco, inchando-se contra as suas paredes, e não morrer afogado. E enquanto a tempestade ribombava, ele lutava, não para evitar de se evaporar rapidamente da “mama” dos vivos, mas sim para ter mais algum tempo para as suas inerentes e últimas retrospectivas. E logo o buraco lhe trouxe aquela cisma que bem lhe custara, a qual lhe dera o esquisito-pensamento, que ele era um canudo vazado. Porém lembrou-se logo que perdera as esperanças “de barriga aberta no hospital”, quando lhe sacaram um gato do esófago.

E lutando contra a morte pela morte, assim Veiga ia resistindo mais um pouco. Ele tinha já a certeza que não mais passearia em movimento basculante na calçada. Que não mais preocuparia todos os seus vizinhos nas suas horas de ócio. Que não mais daria pretexto ao taberneiro Semeão que o fizesse sentir um ser não capaz de equacionar fosse o que fosse, principalmente sobre as suas gerais movimentações; porque se ele soubesse qual a razão de as fazer, facilmente aprovaria que, o que ele fazia, não era só por ser casposo e atolambado, mas sim por lhe crescer as solas reais dos pés em tempos iguais aos gastos pelos coelhos quando estão a bater ininterruptamente com os dentes crescentes, evitando desse modo de sucumbirem esquartejados pela boca. E só de pensar nessas coisas, Veiga até “desejou” sair do buraco, e analisar os pés. Contudo, para além destas reflexões, ainda lhe deu para reviver aqueles momentos de prazer na perseguição que fez a uma moça muito boa entre os joelhos e os ombros. Sentia-se atrás daquelas duas metades bailarinas e rechonchudas exalando onde aonde um perfume feminino, que lhe fazia animar o seu “pedúnculo”… Então, já num lugar ermo, atirou-se a ela com todo o seu ardor, com toda a carga de espermatozoides que lhe engrossavam a uretra, e arrancou-lhe freneticamente a roupa para logo se vislumbrar perante a sugestiva almofada capilar, tremendo contudo com certa preguiça fornicativa. Porém, assim que a moça escachou as pernas, já arrastada para o túnel mucoso do amor, aguardando a todo o vapor a sua entrada, algo se processou no seu faro mental, pois que, em vez de rasgar a cavidade peluda com sabor a mel e a marisco, entrou rapidamente num buraco de saneamento da rede de esgotos das redondezas. Desde então, este pequeno incidente, adicionado à tal queda no penico quando bebé, fez com que a sua projecção como ser humano fosse marcada pelos ferros escorregadios untados na obsessão esquizofrénica dos buracos. Tais cavidades para ele envolvidas por estritas loucuras sem fundo mensurável. E nessa noite da catástrofe ele encontrou então o buraco, que lhe foi dando fantasias paradoxais, onde o desejo e a recusa do mesmo o embalavam para racionais retrospectivas. Porém havia à partida um elemento com a sua esmagadora importância no que se refere à sorte do homem. Era a súbita e estranha tempestade. E isso Veiga nunca previra nas suas análises afectivas com os buracos e quais os usufrutos. Como tal, o modo em como foi alojado na cavidade não lhe dando oportunidade em determinar a sua penetração…, a força com que as águas lhe afogavam as pernas, e o lixo que ia crescendo à sua volta retirando-lhe a aparente forma humana, facilmente o faziam concluir que o seu fim estava próximo e que o exorcizar a sua memória era de necessidade premente.

Já próximo da madrugada, Veiga ainda continuava insistente nos seus pensamentos, embora fizesse um esforço terrível para se segurar contra as paredes da cavidade. È que as águas torrenciais em determinada altura, haviam feito diluir o diâmetro inicial do buraco, criando-se logo um lapso de ajustamento entre o corpo aprisionado e as infindáveis ravinas ligadas entre si. Porém Veiga apercebera-se disso e logo se inchara como um sapo malandro e inteligente, evitando ainda por mais algum tempo a sucussão do seu corpo pela gravidade da Terra. E nessa madrugada ainda caíam cúmulos e cúmulos de formação de água, fustigando o malogrado Veiga encurralado como um chacal, enquanto que os relâmpagos iluminavam tenuamente as paredes das casas da calçada. Cães afogados continuavam deslizando pela rua abaixo, alguns dos quais se empilhavam em volta daquele corpo quase já sem vida. Lixo e carcaças de gatos esquartejados também por ali estacionavam tapando-o completamente. Se por acaso algum madrugador fosse acordado pelo temporal, e olhasse pela janela de casa para a rua, nada mais veria que um casulo pastoso, também lamacento, preso ao pavimento da calçada. Contudo ainda ali havia vida, uma existência que se apagava, um ser que não mais daria dentadas no lombo das vacas em busca de alimento, como às vezes fazia nos latões de lixo, que previa que a sua careca ficaria sempre mergulhada na sombra da terra húmida, bem diferente daquela que o seu cabelo lhe dava, que deixaria de ter remorsos por ter cortado com as conjugais suadelas da púbis; principalmente quando costumava aquecer o “pedúnculo” num fogareiro no acto propedêutico das suas e só suas punhetas, que não mais cobiçaria as “pombinhas” das crianças da calçada, que deixaria morrer a convalescença com todas as atenções da vizinhança, e que lhe dava o prazer empírico de sentir mãos caridosas limpando-lhe o orifício de obrar…Efectivamente Veiga previa tudo isto, já manietado nos claustros da morte, todo geladinho e com fome, mas com os olhos abertos, enrolados, no sentido profundo do buraco.

Antes de morrer, assistiu-lhe então um último sopro de vida, um elemento ósseo que o fez entalar na garganta, e que lhe saiu disparado até um tempo não muito remoto. Esse sopro era algo que lhe acontecera numa noite de desatino. Fôra nessa tal noite em que ele chegou a casa arrasado, depois de uma escalada da calçada, e se dirigiu para a cozinha, frenético, com o fito de aquecer água que logo seria bebida por cima de fruta verde já digerida, roubada no quintal do Semeão taberneiro. Ainda não tinha tragado o líquido, e deu-se-lhe na cabeça que não existia. Mas bastou-lhe uns breves segundos para se convencer que mesmo que não pensasse existia na mesma. Ousou fazer o seguinte: saltou de cu para os discos quentes do fogão, deixou de pensar e quando ânus lhe cheirava a torradas, convenceu-se que o pensamento lhe facilitaria uma certa existência, a qual por sua vez lhe poderia proporcionar pensamentos mais cautelosos e menos aventureiros. Contudo, mesmo assim, não lhe bastou para sentir-se vivo. E foi então que desatou a correr pela calçada abaixo, gritando que lhe ferrassem na cabeça.
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Por fim o temporal esgueirou-se com o crescente alvor do dia.

O Sol iluminou a rua com histéricas gargalhadas de luz primaveril.

O ar estava limpo, fresco e sadio. Os habitantes dali tomaram logo as janelas logrando ver passar o Veiga…

Mas a meio da calçada um lote de lixo cobria uns sapatos rotos que sorviam água pelas solas. Estes aparelhos de locomoção seguravam um corpo inerte à face do pavimento, evitando assim que ele desaparecesse totalmente na cavidade, onde lutara até perder a velha mania de fazer concorrência aos buracos…

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